domingo, dezembro 27, 2009

NAQUELA ÉPOCA NÓS ANDÁVAMOS EM BANDOS

“As idéias, para mim, são como as nozes, e até hoje não descobri melhor processo para saber o que está dentro de umas e outras, - senão quebrá-las.”
Machado de Assis

Naquela época nós andávamos em bandos. Não sei se era pura impressão. Ele não. Não se acostumava com essa tarefa de escolhas. Um dia chegava músico, outro dia escritor. Tinha sempre notícias novas, detalhes de uma canção, coincidências de uma narrativa. Vinha sempre imbuído de um encantamento para nos presentear. Do mesmo modo que chegava, partia. Certo dia soubemos que havia morrido. Foi quando decidi contar a sua história, mas ainda era muito cedo. Era preciso que o tempo passasse para que as coisas ficassem mais nítidas dentro de mim. Só assim teria condições de recuperá-lo. Transformá-lo em cristal muito fino, absolutamente transparente.
Andávamos em bandos. Não era impressão. Ele não. Quando nos encontrava trazia uma alegria desmesurada. Alegria que se expressava nas palavras que ele sabia tão bem usar. Movia com facilidade o rumo de qualquer conversa. Lembro-me que certa feita pediu o violão e tocou uma música que nunca havíamos escutado. A letra da canção dizia exatamente aquilo que queríamos há tanto tempo expressar e não conseguíamos. Era uma espécie de mágico sem truques. Quando de outra vez pedimos que repetisse a canção, ele se negou afirmando que já a tinha esquecido. Estava preparando coisas novas que quando estivessem prontas nos mostraria.
Assim passava o tempo. Andávamos em bandos. Ele não. Poeta leia aqui o que escrevi, ou, Poeta escute isso aqui. O chamado possuía essa variação. Eu lia atento as narrativas. Às vezes elogiava, às vezes criticava esse ou aquele trecho. Ele ria. Você é um grande poeta. Deixe-me ver o que anda fazendo. Eu mostrava as páginas rabiscadas. Tinha uma generosidade absoluta com os amigos. Sempre acreditou mais em mim do que eu mesmo. Não pare de escrever Poeta, você é dos bons.
O engraçado é que a maioria de nós queria ser despojado como ele. Não dava importância ao que fazia. Repetia – citando Machado - que as idéias eram como nozes, tinha-se que quebrar para ver o que havia dentro. Depois concluía: as minhas nozes ou estão vazias ou não tem sabor duradouro.
Na verdade ele quebrava nozes para nós, nos alimentava com as suas idéias. Andávamos em bandos. Ele não. Poeta estou tentando escrever um romance. Já tenho o título. Depois me contou que o escritor Antonio Torres depois de muitas idas e vindas para compor o primeiro livro, encontrou-se numa noite chuvosa dentro do apartamento em São Paulo escutando My funny Valentine de Miles Davis. Ao som do trompete mágico sentiu Um cão uivando para a lua. Era o título do seu primeiro livro. Está vendo Poeta, estou no caminho certo, já tenho o título agora é só escrever o livro.
Não sei se ele começou o romance. Mas o título era por demais sugestivo: Quando os homens menstruam. Tentou até me explicar o enredo. Para meu azar, foi exatamente o dia que estava com a namorada nova. Uma dura conquista que consumiu vários poemas, noites de vodca e quase uma úlcera. Só tinha olhos para ela. Não prestei atenção ao que ele me falava. Pouco tempo depois havia esquecido o romance, eu também em pouco tempo já tinha outra conquista em alvo. Seguindo o mesmo ritual: vários poemas, noites de vodca e quase uma úlcera.
Ele às vezes desaparecia por várias semanas. Voltava mais pálido do que o normal. Chamava a esses períodos de reclusão voluntária. Não sabíamos o que fazia durante esses períodos. Numa dessas voltas, nos encontramos numa mostra de filmes para assistir a Árvore dos Tamancos de Ermano Olmi, cineasta romeno premiado em Cannes. O filme era longuíssimo, seis horas de duração. Ele estava com um livro enorme debaixo do braço. Quando a sessão começou retirou uma pequena lanterna do bolso para ler o livro. Ficou assim durante todo o filme.
No saguão me disse Poeta você tem que ler este livro, é do João Ubaldo, Viva o povo Brasileiro. E como possuía detalhes a respeito de tudo, continuou. Poeta os originais desse livro tinham 6.750 gramas, pesados na balança da bodega de Valter na ilha de Itaparica. E olha que o João disse que o Valter ficou famoso por não ser rigoroso com o peso da sua balança. Também me falou que o livro foi escrito porque o editor do João brincou dizendo que os escritores brasileiros só escreviam livros pequenos, mirrados, de birra João fez Viva o povo brasileiro. Pouco tempo depois me presenteou o livro com a dedicatória Poeta, depois de ler este livro, você vai querer escrever narrativas. É pena que ele não esperou tempo suficiente para ver sua previsão concretizada. Partiu me deixando com as nozes que eu teimo em quebrar para ver o que há dentro. Oxalá elas tenham algum sabor.

4 comentários:

Anônimo disse...

É, poeta, antigamente e infelizmente...

Grande conto.

Anônimo disse...

Poeta, como reza a tradiçao de ler um conto no ultimo dia do ano para que a historia nos seja boa no ano seguinte- que acabei de inventar, degustei mais uma vez esse belo trabalho de linhas e entrelinhas.
Em mim reaviva a saudade de pessoas e lugares que nao mais verei - como no rio de Heráclito. Paradoxalmente, estarao todos, lugares e pessoas, sempre comigo. Bastando-me apenas, para isso, abrir seu texto e andar em bandos novamente.
Feliz ano novo. E que as historias nos sejam leves.

Obrigado e grande abraço a todos os seus.

ErikaH Azzevedo disse...

Ele se foi, mas ficou, o escrever no enche de magias assim, nos entrega a eternidade em bandeja.

È por isso que digo...é preciso perpe(ta)tuar o que se sente e esse milagre só se faz devido as palavras.

EU também gostaria de lher um livro com esse título ... dá uma ideia de sensibilidade feminina, um modo de ser homem diferente..deveria ser um bom livro. Sempre tive a impresão de que todo homem sera mais homem se fossem um pouco mais mulher.

Bjos que agradecem a compartilha desse teu sentir.

Erikah

Eurico disse...

Com que enlevo leio esse teu narrar... Há algo universal nisso tudo, nesses bandos. Tão universal que me sinto transportado, aqui, nesse meu cantinho de escrevinhador, praí, pra essas bandas da Feira, a caminhar com esses bandos... Obrigado, Poeta, pelo enlevo..